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1 year ago

Peixes

Eu ainda não consegui tirar a cena daquela tarde da minha cabeça.

De quando eu estava lavando e preparando o peixe pra guardar na geladeira e mexi com a carcaça da cabeça.

No início só tinha um pedaço

Como esfregar o limão era parte da atividade, fui passando com cuidado, esfregando nas escamas

E então decidi largar o limão e sentir um pouco da textura, acredito que pensei não custar nada fazer isso

Passando os dedos, senti as escamas, alimentando a minha súbita curiosidade mórbida Logo, percebi que os olhos tinham uma consistência que lembravam borracha

Descobri que se eu apertasse um músculo que tinha atrás, eu conseguiria fazer pressão o bastante e o olho saltaria

Eu apertei um pouco o olho dele, que ainda estava intacto, tive vontade de apertar até explodir, não vou mentir

Mas fiquei hipnotizada

Apertei um pouco, mas não o bastante para saltar

Quebrado o transe, voltei a lavar e passar o limão nos outros pedaços 

Descobri que aquele não era o único pedaço da cabeça que estava na sacola

Eram 2 peixes

Logo, haviam 4 pedaços, 2 de cada cabeça

Identifiquei as partes separadas pela cor dos olhos e por um momento juntei as quatro metades e contemplei os rostos, agora completos

Parando para pensar

Eu não sei o que me dá o direito de ter eles mortos e retalhados no meu balcão para o meu bel-prazer 

Eu sei que eles não mereciam estar ali, mas não evitei minha perversidade

O que me dá o direito de brincar com os retalhos deles assim?

Tratá-los como aqueles brinquedos infantis que envolvem juntar peças, como se fosse um quebra-cabeça

Será que eu sou superior a esse ponto?

Mas sempre foi assim, não foi?

Vamos lá, antes de chegar aqui

Algum ser humano precisa criá-los e vendê-los para sobreviver

Então, ele (ou ela/elu) decide pesca-los

Ele prende a isca no anzol e o joga no lago

daí um peixe

guiado pelo instinto de ver uma presa, a agarra com a boca

de repente esse anzol é puxado a superfície com força

e o peixe é puxado para fora da água

ele se debate, fica se mexendo, talvez na tentativa de voltar para a água

Depois alguém os lava e raspa com uma peixeira para tirar a escama

Após isso, cortam a cabeça e a cauda com a manchete, porque o que interessa é a carne macia e muitas vezes sem osso que fica no corpo

O corpo é aberto no meio e às vezes, a depender da quantidade de sangue, é lavado várias vezes

E geralmente o processo termina com esses despojos sendo vendidos numa feira a algum adulto que faz as compras todo final de semana

E parece haver certa graça nisso

Parece haver certa satisfação em matar algo e preparar seu corpo para comer

eu me pergunto se há alguma paz para eles

até onde sei os animais não refletem sobre sua existência

Mas com certeza eles não sabiam que iam acabar mortos depois de uma pescada

ou que seriam criados para servirem de alimento

muito menos que depois de mortos ia ter uma mulher os fazendo de quebra cabeça

Meu espírito de adolescente revoltada fica se perguntando onde está a humanidade em fazer uma coisa dessas 

E e vem o pensamento de que ao falarmos humanidade nos referimos ao que há de único no ser humano no sentido de bondade, empatia e solidariedade

Entretanto o que é mais próprio da humanidade são todas as desgraças que aconteceram e acontecem desde que o mundo é mundo

e eu tenho certeza que não sou a primeira a pensar isso

não é possível que eu seja a primeira pessoa a pensar nessa tese

As vezes é melhor viver na ignorância mesmo

Pensar demais dói

Sentir dó dói

E o que escrevo aqui muito provavelmente não mudará isso

Os peixes ainda serão pescados 

serão retalhados

e vendidos

A. Sandes| 09/2023


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